A Misericórdia como Evidência da Fé
Publicado em 31/08/2025
Chegamos ao versículo 7 de Mateus 5: "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia."
Este versículo marca um ponto crucial no Sermão do Monte. A partir daqui, especialmente nas quatro últimas bem-aventuranças, Jesus passa a enfatizar a prática da fé no contexto social e comunitário. As quatro primeiras bem-aventuranças tratam de realidades internas: humildade de espírito, o choro, a mansidão e a fome e sede de justiça. São transformações profundas operadas no íntimo do cristão pelo poder do Evangelho.
Mas a partir do versículo 7, essa transformação interior precisa transbordar em atitudes visíveis. A espiritualidade, antes concentrada na intimidade com Deus, passa agora a ser evidenciada no relacionamento com os irmãos e com o mundo ao redor.
Essa mudança nos lembra que a fé cristã não é contemplativa nem isolada. O cristianismo não é monástico — não é viver sozinho com Deus em um mosteiro, longe da sociedade. Pelo contrário, Jesus afirma: "Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos."
Ser cristão é ser sal na terra, luz no mundo. É ser como uma cidade edificada sobre um monte, visível, observada o tempo todo. O Evangelho precisa ser demonstrado. A fé cristã não é filosofia; é prática.
Portanto, o momento agora é de evidência. A fé que foi internalizada pelas quatro primeiras bem-aventuranças precisa ser vivida diante dos homens. Não existe cristianismo sem evidências.
O cristianismo exige evidência. E essa evidência vem através de atitudes, e não meramente de ações. Qual a diferença?
Ação pode ser qualquer movimento externo, muitas vezes sem um valor espiritual real. Já atitude é um ato baseado em um princípio e valor do Reino de Deus.
Para ilustrar isso, olhemos para a experiência de Moisés em Êxodo. Deus, por sua misericórdia, havia decidido libertar o povo de Israel e o conduzir à terra prometida. Após os sinais e pragas, Faraó enfim liberta o povo. Porém, diante da perseguição iminente no deserto, o povo se desespera, lamenta e deseja voltar ao Egito.
Moisés, diante da pressão de milhões, poderia ter cedido ao pânico. Mas teve uma atitude: buscou ao Senhor em oração. E Deus respondeu de imediato: "Por que clamas a mim? Diga ao povo que marche."
Isso é atitude. Moisés agiu com base na sua fé, nos princípios da obediência e da confiança. Mesmo vendo os carros de Faraó se aproximando, ele manteve sua postura de dependência total de Deus.
Ao continuarmos a análise do versículo 7 — “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” — nos deparamos com um ponto essencial: a distinção entre atitude e ação.
Quando Deus diz a Moisés: “Por que clamas a mim? Diga ao povo que marche”, Ele está, em outras palavras, dizendo: “Pare de orar e aja com fé, ou vocês vão morrer”. Deus abriria o mar, mas o povo precisava agir. Essa é a essência da atitude baseada na fé.
Mas mesmo Moisés, exemplo de obediência, cometeu um erro. Em outro momento, Deus ordenou que ele falasse à rocha, mas ele agiu por impulso e a feriu com o cajado. O resultado? Água saiu, pois Deus cumpre sua Palavra, mas Moisés perdeu o direito de entrar na Terra Prometida.
Esse episódio revela algo crucial:
O Sermão do Monte, principalmente a partir do versículo 7, passa a tratar de atitudes práticas, não apenas da crença interior. A fé cristã não é medida apenas por declarações de espiritualidade. Jesus está formando em nós uma nova maneira de viver — onde a transformação interior se manifesta exteriormente.
Cristianismo sem evidência é mera filosofia. E, como Jesus deixa claro, “pelo fruto se conhece a árvore”. Não é apenas pela fé confessada, mas pelo resultado visível dessa fé. A partir do momento em que somos quebrantados, mansos, famintos por justiça, precisamos agir como quem foi transformado.
É aqui que a fé deixa o quarto secreto e passa a andar nas ruas.
Jesus ilustra essa verdade quando encontra o jovem rico em Mateus 19. O jovem se apresenta com palavras religiosas e autoconfiança:
"Bom Mestre, tenho cumprido todos os mandamentos. O que mais devo fazer para herdar a vida eterna?"
Jesus, com sabedoria, redireciona a conversa ao afirmar: “Por que me chamas de bom? Bom é apenas o Pai que está nos céus.”
Não que Ele negasse sua divindade, mas deixava claro que aquele diálogo seria entre Cristo como homem e homem como homem — eliminando desculpas do tipo: “Ah, mas é fácil para Jesus, Ele é Deus.”
Jesus, então, lista os mandamentos e o jovem confirma: “Tenho cumprido todos.”. Mas Jesus vai além: "Então, vende tudo o que tens, dá aos pobres e me segue.". Fim da conversa. A fé daquele jovem era apenas interna, teórica. Quando confrontado com uma atitude prática, ele recuou.E assim acontece até hoje: muitos preferem crer sem se comprometer, falar sem se desgastar, ensinar sem viver. Mas quem é de verdade, vive. E quem vive a fé, se expõe.
Cristãos que vivem apenas na esfera da crença, sem prática, acabam sendo os mais críticos daqueles que trabalham para o Reino. Nunca se cansam, nunca se envolvem, nunca se desgastam. E ainda querem ensinar como não se desgastar.
Mas a vida cristã é feita de degraus. Não basta crer: é preciso viver o que se crê. Não se trata de negar a confissão cristã, mas de afirmar que a atitude fala mais alto que o discurso.
Cristo está criando uma nova atmosfera no sermão. Ao dizer “bem-aventurados os misericordiosos”, Ele rompe com a estrutura apenas contemplativa das primeiras bem-aventuranças e nos chama à ação prática da fé.
Essa é a realidade: quem é, faz. Não há como dissociar identidade e prática. E essa verdade não é apenas ensinada por Jesus — Tiago, irmão do Senhor, reafirma com veemência. Não porque somos salvos pelas obras, mas porque a fé verdadeira sempre gera frutos visíveis. Se não há evidência, não há fé real. Vejamos alguns pontos importantes:
Tiago apresenta um exemplo prático e acessível: “Se um irmão ou uma irmã estiverem com frio e fome, e você disser apenas: ‘vá em paz, aqueça-se e alimente-se’, mas não fizer nada por eles — que proveito há nisso?”
Esse é o retrato da fé inoperante — cheia de palavras, mas vazia de ação. E Tiago conclui com firmeza: “Assim também a fé, se não tiver obras, por si só, está morta.” (Tiago 2:17)
Mesmo quem tem pouco pode agir com misericórdia. Paulo escreve em 2 Coríntios 8 que os pobres da Macedônia ajudaram os ainda mais pobres da Judéia. Ou seja: ninguém está isento de praticar a fé. A fé verdadeira se expressa em atitudes.
Tiago imagina um interlocutor: “Tu tens fé, e eu tenho obras. Mostra-me essa tua fé sem obras, e eu, com as minhas obras, te mostrarei a minha fé.” (Tiago 2:18)
Aqui, ele deixa claro: Fé não se declara. Fé se mostra. No Reino de Deus, palavras não bastam. A fé é visível, concreta e prática.
Tiago amplia o argumento com um contraste forte: “Crês que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem — e tremem.” (Tiago 2:19)
O problema não é crer. O diabo também crê — e ele treme diante da santidade de Deus. Mas há quem diga crer, e nem teme, nem se move, nem obedece. Essa é uma fé falsa, morta, superficial.
Tiago encerra com o exemplo de Abraão, pai da fé. Fica claro: Deus nunca quis Isaac — Ele queria Abraão.
“Oferece teu filho.”
Não para tomá-lo, mas para provar a integridade da fé de Abraão. Sua obediência evidenciou publicamente aquilo que já era verdadeiro no coração.
Essa lógica aparece também nas bem-aventuranças que Jesus ensina em Mateus 5.
É nesse ponto que Jesus começa a tratar da teologia prática da fé vivida.
Para entender corretamente essa bem-aventurança, precisamos diferenciar a misericórdia bíblica de conceitos distorcidos que costumam ser confundidos com ela.
Misericórdia é uma atitude fundamentada na fé — é lançar o coração nas misérias do outro, seja:
Mas há um limite: a verdadeira misericórdia não interfere na disciplina de Deus nem no amadurecimento que Ele está promovendo. Ela não passa a mão na cabeça, e não trata tudo como coitadismo.
Dó, por outro lado, é um sentimento superficial, que não discerne o que precisa de consolo e o que precisa de correção. A dó anula o processo de crescimento e trata a pessoa como um ser frágil e sem potencial de mudança. Misericórdia vê o “próximo”. Dó enxerga um “coitado”. E isso faz toda a diferença.
Ajudar alguém faz parte da misericórdia, mas não resume o conceito bíblico. A misericórdia acode, tem compaixão, pode contribuir materialmente — mas sempre com discernimento, esperando transformação real na vida da pessoa.
É como alguém que se afoga: você pula e salva — isso é acudir. Mas compaixão de verdade é enxergar com os olhos de Deus — e só conseguimos isso conhecendo quem Deus é pelas Escrituras.Sem doutrina, acabamos projetando um “deus” do nosso próprio coração — e aí, em vez de misericórdia, oferecemos dó disfarçada.
Misericórdia também não é impedir que o outro sofra qualquer consequência ou aliviar o caminho a ponto de deseducar. Em João 11, Jesus ordena que as pessoas removam a pedra do túmulo de Lázaro, mesmo sabendo que iria ressuscitá-lo. Isso mostra que o milagre divino não substitui a responsabilidade humana.
A misericórdia sabe o seu limite. Ela faz o que é necessário — mas deixa o restante para quem precisa agir.
Uma ilustração que nos ajuda a entender esse princípio é que, ao ver uma borboleta lutando para sair do casulo, muitos pensam em ajudá-la, cortando o casulo. Mas essa “ajuda” condena o inseto à morte. O esforço para sair do casulo fortalece suas asas. Sem esse esforço, ela não voa, não sobrevive.
Assim também acontece na vida cristã.
A verdadeira misericórdia sabe quando agir e quando se conter. Ela socorre, mas não anula. Ela ama, mas espera frutos. Ela estende a mão, mas não carrega nas costas quem pode andar.Não corte o casulo. Algumas dores são ferramentas que Deus usa para gerar maturidade e transformação. Misericórdia não é livrar da dor, é caminhar junto sem impedir o propósito de Deus.
A cena da mulher apanhada em adultério, registrada em João 8, é uma das ilustrações mais profundas da verdadeira misericórdia. Jesus está no templo quando fariseus e escribas trazem a mulher, apanhada em flagrante adultério. Eles lançam uma armadilha: “A Lei manda apedrejar. E tu, que dizes?”
Jesus permanece em silêncio, escreve no chão e, diante da insistência, responde: “Aquele que não tem pecado, atire a primeira pedra.” Um a um, os acusadores se retiram.
Esse é o primeiro aspecto da misericórdia: o perdão imediato. Mas Jesus não para aí. Ele pergunta à mulher onde estão seus acusadores e, ao ouvir que não há ninguém, declara: “Eu também não te condeno. Vai, e não peques mais.”. Aqui, vemos a segunda face da misericórdia: o chamado à transformação. Jesus oferece graça, mas também responsabilidade. Ele não “passa a mão na cabeça” — Ele espera frutos.
Outro exemplo ocorre no Êxodo.Deus, em misericórdia, poupou os primogênitos dos israelitas, instruindo que marcassem os umbrais das portas com sangue. Mas junto com o livramento, veio a ordem: mochila nas costas, ervas amargas na mesa, prontos para partir.
Ou seja, Deus exerceu misericórdia, mas não carregou ninguém à força. A intervenção divina exigia obediência humana. Mais tarde, quando o povo já estava às portas da Terra Prometida, hesitou diante dos relatos dos espias. Mesmo com a promessa clara de Deus, a incredulidade os impediu de entrar — e sofreram as consequências.A misericórdia abre portas, mas não força ninguém a passar.
Naamã, comandante sírio e leproso, também viveu um episódio marcante. O profeta Eliseu o instrui: “Mergulhe sete vezes no rio Jordão.”
Simples. Mas Naamã quase recusou — queria algo “mais milagroso”. A cura viria, mas ele precisava se mover. Deus poderia curá-lo instantaneamente, mas exigiu ação como evidência de fé.
A mulher samaritana também recebeu misericórdia de Jesus, em João 4. Ele poderia simplesmente realizar um milagre ou dar água viva imediatamente. Mas não faz isso. Ele diz: “Dá-me de beber.”
Jesus preserva sua dignidade ao lhe permitir participar. Ele oferece salvação, mas convida ao envolvimento. Não a trata como uma coitada, mas como alguém capaz de responder à graça.
Esses exemplos apontam para uma verdade sólida: Misericórdia não é fazer tudo por alguém. Não é aliviar todo sofrimento. É agir com compaixão, sim — mas esperando resposta, buscando transformação, aguardando frutos.
Jesus nos faz uma promessa clara: "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia." Quando praticamos a misericórdia verdadeira — aquela que é ativa, compassiva, responsável e bíblica — nós atraímos a misericórdia de Deus sobre as nossas vidas.
Um exemplo disso é Cornélio, em Atos 10. Ele era um homem gentil que buscava a Deus, orava e ajudava os necessitados. Um anjo lhe apareceu e disse: "Deus ouviu tuas orações e viu tuas esmolas." O resultado? Deus enviou Pedro com o Evangelho, e Cornélio e sua família foram salvos. Suas atitudes de misericórdia se tornaram um memorial diante do Senhor.
A verdadeira misericórdia, vivida no padrão de Deus, não é um simples ato de caridade. Ela é, na sua essência, um ato de adoração. É a expressão de uma fé madura e uma prática que agrada ao Senhor. Ela não nasce do sentimentalismo, mas da convicção de que é a vontade de Deus. Ela não impede o crescimento, mas coopera com a maturidade de quem a recebe.
Portanto, sejamos misericordiosos como o Pai é misericordioso. A nossa motivação não deve ser a pena ou o desejo de agradar, mas o amor bíblico, a compaixão genuína e a fidelidade à Palavra.
É fundamental não confundir misericórdia com permissividade ou assistencialismo. A misericórdia bíblica tem forma, tem estrutura e tem um padrão: o Pai. Que a nossa fé seja vivida com atos concretos de misericórdia, assim como as próximas bem-aventuranças nos chamam à pureza, à paz e à perseverança.